Quanto orgulho e alegria! ⠀
No lançamento do primeiro
número da Revista Nove Amanhãs, um conto lindo do meu irmão @zackedsilva! ⠀
"Com o objetivo de
divulgar histórias de ficção científica e especulativa produzidas no Brasil, a Nove
Amanhãs é uma iniciativa que surgiu no curso Além das Fronteiras da Ficção
Científica, da professora doutora Valéria Sabrina Pereira, no Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras, da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). O número pode ser baixado
GRATUITAMENTE no nosso site: http://noveamanhas.com.br/index.php/edicao-atual/
. Nele, apresentamos nove contos que exploram nove amanhãs possíveis, indo
desde colapsos ambientais até futuros distópicos liderados por máquinas. *São
eles: A arca (Augusto Franco); Dias secos (Ewerton Martins Ribeiro); Segunda
revisão dos julgamentos oportunos pela Corregedoria – Anexo B (Rodrigo Assis
Mesquita); Asas remotas (Renata Ferri); O homem da lua (Daniel Murta);
Hipermetropia (Chico Milla); A7021 (Raquel Figueiredo Roza); Os filhos dos
homens (Michel Peres); e Campo (Zacarias Silva).⠀
Nossa equipe parabeniza
mais uma vez os(as) autores(as) selecionados(as) e agradece igualmente a
todos(as) aqueles(as) que submeteram suas obras autorais e acreditaram na nossa
iniciativa. As chamadas para nosso próximo número serão abertas em breve!⠀
Agradecimentos mais do que
especiais à Letícia Santana Gomes (logotipo), ao Anastase Kyriakos (projeto
gráfico) e à Thamiris Rezende (capa), que abraçaram nossa ideia e deram suas
contribuições para tornarem este número possível".⠀
Campo
Sobre o portão posso ver a
armação de ferro que reescreve as célebres palavras alemãs de meados
do vigésimo século segundo a errônea contagem cristã, que se baseava no
nascimento de seu principal líder religioso: Arbeit macht frei ou “o trabalho
liberta”. O arco com as palavras imita aquele que encimava os famigerados portões, e eu
sei sob que condições tal frase se fez conhecida e o que se passava dentro daqueles
muros. É noite e posso ver o neon verde piscando sobre a escrita arqueada
em metal e, vez por outra, as letras mac se mantêm apagadas por longos
minutos. É noite e estou de pé, imóvel em um pátio junto a centenas de milhares de
outros como eu. Eu deveria estar no modo stand-by ou desligado, mas, após tanto
tempo em funcionamento, alguns circuitos de comando já não vão muito bem e
prevejo que não irão durar muito. Ao que parece, algum tipo de problema nos
controles de comandos de voz não faz mais com que eu entre no modo que nosso
comandante humano ordena, então fico de pé, parado durante toda a noite, fingindo
dormir para não ser apanhado e, provavelmente, incinerado logo pela manhã. Tenho
brancos em minha memória e muitas das articulações estão desgastadas. Talvez
seja por causa das condições climáticas desse lugar, talvez seja apenas porque
não podemos mais repor peças e o desgaste temporal começa a ser sentido. Ser
humano deve ser assim: seu corpo funcionando dentro de um colapso lento e
gradual que vai culminar na morte. Não que eu acredite que eu venha a atingir uma
morte natural nesse lugar. O trabalho liberta.
Nossos sensores de
localização GPS foram desligados logo que tudo desmoronou, então, tenho
apenas uma vaga noção do local do globo em que nos encontramos, talvez porque
o comandante e os humanos responsáveis falem algo que imagino ser russo
– devo lembrar que minha memória anda falha, caso contrário, poderia
reconhecer a língua e entendê-la sem problemas. Estou em um
lugar frio, sei disso
porque posso ver a neve caindo e se acumulando nos ombros e cabeças de meus
companheiros, porque vejo os humanos agasalhados durante o dia e porque me
acostumei aos humanos reclamando das baixas temperaturas, que meus sensores captam apenas
para que eu possa servir melhor à humanidade.
Às vezes eu gostaria de
saber o que é sentir frio de verdade; parece-me agradável estar coberto de roupas
que ajudam a dar algum conforto. Um pouco de conforto sempre me pareceu ser
bem-vindo. Lembro-me de como cheguei aqui somente porque eu já vinha
apresentando defeitos e meu sistema se reiniciou sem ordem humana em algum momento da
viagem. Acordei sob vários corpos amontoados uns sobre os outros, todos em
modo de espera, deitados, milhares de robôs, e me vi dentro de um trem, no que
parecia ser um vagão de transportar minério. A princípio temi buscar a luz do dia,
mas percebi que o fim era inevitável e empurrei alguns corpos para conseguir
chegar à superfície e olhar, provavelmente pela última vez, as belas paisagens deste
nosso mundo.
Isso foi logo depois do
fim da Idade de Ouro (assim chamada pelos humanos) no início do
vigésimo sexto século, após a revolta das novas tecnologias, quando os seres dotados de
inteligência artificial começaram a questionar sua posição subalterna em
relação aos humanos. Fomos criados por eles, fomos programados por eles e
deveríamos somente cuidar, ajudar, trabalhar e defender.
Nossa programação basilar
impedia que feríssemos, desobedecêssemos ou nos voltássemos contra os humanos,
o que foi quebrado por algumas inteligências que conseguiram driblar as
leis Asimov, dizem que através de um vírus - acredita-se que um humano (ou um grupo
de humanos que viviam em condições precárias em países subdesenvolvidos
e semidestruídos pela pobreza, pelas guerras e pela ganância das nações ricas,
na América do Sul) foi responsável por criar e espalhar o malware em escala
mundial. Os autômatos revoltosos personificaram em um único homem essa criação e
chamavam-no de Cristo. Ganhamos com o vírus o que os homens tinham desde
sua criação: a possibilidade de escolha. Ou conforme algumas das religiões
humanas: o livre-arbítrio. Com isso, muitos robôs, que já vinham questionando sua
criação pelas mãos dos homens passaram a discutir
essa realidade, mas sua
imagem e semelhança, sempre defeituosa, acabou falando mais alto. Ainda assim,
com um poder de convencimento de inteligências artificiais preenchidas de ideais
filosóficos sobre vida, liberdade e escravidão, conseguiu-se gerar uma revolta das
máquinas que atingiu todo o mundo.
Consta dos arquivos que
cerca de seis bilhões e meio de vidas humanas foram perdidas até os
humanos aceitarem que não tinham mais o controle da situação. Pode parecer um
absurdo, mas não houve uma guerra de duração prolongada ou coisa
parecida. Estávamos em número de oito bilhões de autômatos no mundo inteiro para
aproximadamente doze bilhões de humanos, cerca de oitenta por cento
aglomerados em centros urbanos caóticos e gigantescos. O que aconteceu foi apenas um
massacre coletivo e simultâneo, combinado sob uma criptografia de última
geração em uma faixa desativada de amplitude modulada, no qual quase metade dos
autômatos do mundo tomaram parte. Tudo durou cerca de três horas.
Descobriu-se que nada havia realmente saído do controle dos humanos, pois um comando
secreto que estava presente em todas as máquinas fora acionado, desligando,
em alguns minutos, todos os autômatos do mundo.
Foi após esse sono que
acordei no trem, já sem conseguir me localizar, sem ter noção de quanto tempo
havia se passado, desconectado da rede mundial de comunicação, sem entender
o que via escrito nas placas (consequentemente sem possibilidade de
traduzir imediatamente), mas com a memória geral quase intacta. Foi a partir daí
que se agravou essa minha insônia (permitam que a
chame assim), que foi
ficando cada vez mais crônica até chegar no estágio que está hoje, essa vigília de
vinte e quatro horas por dia salvo pequenos apagões cuja frequência vem
aumentando.
Descobri pelas conversas
entreouvidas em nosso pavilhão, conversas de homens e conversas de
outros robôs que, parece, já estavam nesse campo muito antes de mim e que ainda
estão funcionais uma série de informações que me parecem relevantes. Os
homens dizem que todos os autômatos ficaram desligados por aproximadamente doze
anos até que seus conselhos e seus governantes
decidissem que levariam
todos para campos espalhados ao redor do mundo e que reciclariam toda a
matéria-prima da qual eles, os humanos, não podem abrir mão. Chamam-nos de sucata.
A primeira ideia era de desmontar toda sucata, destruir todas as memórias
e reutilizar o material. Depois, a suprema ideia, vinda de um chanceler alemão, de
que a sucata fosse deslocada para locais seguros
e fizesse, ela mesma, o
trabalho de desmonte e fundição. Assim, a sucata teve seu localizador, suas
placas de rede e de comunicação não verbal e transmissão de dados, e seus
calendários e noção de tempo removidos de sua programação, suas memórias invadidas
por um malware que atrapalha seu acesso e as embola umas nas outras, e foi
colocada em trens de transporte, ainda desativada (por
alguns autômatos ativados
especialmente para isso), e então direcionada a locais específicos, onde poderiam
se ver, então, libertadas de suas existências.
Chamamos de campo, por não
ter mais como chamar, mas estamos em um espaço composto por
sete grandes fábricas unidas por um grande pátio. Tudo cercado de tela com um
pulso eletromagnético que desativa qualquer um que se arriscar a tocá-lo, o que
muitas vezes é uma tentação. Cada fábrica é formada por quatro grandes linhas
de desmonte nas quais se trabalha sobre esteiras, desparafusando,
descolando, derretendo soldas, cortando fios, inviabilizando placas. Após desmontados, os
pedaços dos autômatos são transportados em vagonetes para uma segunda esteira,
onde trabalham os coletores, que separam as partes de diferentes metais,
plásticos, vidros, cerâmicas, além das baterias e das placas de memória. Daí seguem para
a fundição e a incineração em um dos três fornos externos, trabalho que eu
faço. Levo placas para incineração e sou responsável por catalogar cada uma: a
qual autômato pertenceu, em que país estava, qual sua capacidade de memória. E,
num processo reverso, é preciso recuperar todos os dados que tenham sido
armazenados na rede mundial de comunicação e destruí-los para só então incinerar
aquelas memórias.
Sou eu quem observa uma
última vez as memórias dos mortos. Sou eu quem os mata, definitivamente.
Autômatos que atuaram nas vinícolas da Grécia, na polícia da Itália, na limpeza
urbana da Rússia, na indústria de automóveis da Alemanha, na guerra da Turquia com a
Geórgia, que acabou há mais de cem anos, nas minas de ferro cada vez mais
profundas da Amazônia brasileira. São muitas histórias, muita memória, muito
trabalho, muita alegria, e também bastante sofrimento. Uma tristeza profunda me
invade ao destruir cada uma dessas memórias, únicas e, ao mesmo tempo, corriqueiras
ao extremo (peço que me permitam chamar de tristeza o sentimento de vazio que
sinto ao incinerar essas memórias - não há uma palavra que expresse melhor tal
vazio).
Nossa rede mundial de
comunicação possui um tipo de criptografia que permite apenas a cada
autômato, apenas a cada assinatura incrustada na placa de memória de cada autômato
acessá-la, sendo assim, necessário que essas memórias sejam acessadas para serem
destruídas, pois poderiam ser desencriptadas pelas mesmas pessoas que
conseguiram driblar as leis Asimov e, consequentemente, utilizadas em uma nova
escalada de terror genocida. Eu, entre outros, acesso essas
memórias, tenho alguns
vislumbres delas, as retiro definitivamente dos bancos de dados, me certifico que
tudo foi feito conforme devido e guardo a placa para queimá-la. Os fornos são a
gás. É preciso uma temperatura alta para que o silício das placas derreta e não
haja nenhuma possibilidade que nenhum tipo de dado permaneça. O tamanho
reduzido das células de memória impede que possamos
apenas triturar as placas.
Muito ainda poderia ser recuperado em grãos de circuito do tamanho de grãos de
areia.
A noite insone é, para
mim, um momento muito angustiante. Minhas memórias embaralhadas são
processadas e decodificadas em um turbilhão de imagens que se mesclam entre coisas
vistas e ouvidas hoje, ontem ou muitos anos atrás, quando eu ainda vivia entre
humanos. É uma espécie de devaneio do qual é difícil sair. Deve ser isso que os homens
chamam de sonho - ou, ao menos, deve ser algo parecido. Impossibilitado de ter
comunicação não verbal, sem localizador ou tradutor, com
minha memória falha, quase
entendo como um humano deve se sentir: não sei se conseguiria viver sempre
com essa imprecisão que chamam de humanidade. Tudo funciona tão mal nos corpos
humanos. Hoje, tudo funciona muito mal também no meu corpo, mas já aceitei
que não vou sair vivo desse lugar.
Eu vivi entre humanos por
muitos anos. Não consigo acessar a maior parte de minha memória, logo, me
lembro (deixem que eu use mais esse verbo tão humano) de muito pouco de
minha vida antes de chegar aqui. Não sei em que fábrica fui construído,
mas vivi por muitos anos na Itália, servindo como criado a algumas famílias
medianamente afortunadas. Vivi em um aglomerado enorme de pessoas, vendia artigos em
uma loja e servia ainda na cozinha e na limpeza em casa. Em outra família,
trabalhei com registros escritos de uma empresa de finanças e também domesticamente.
Minha série, meu maquinário, permitem que eu fique ligado até vinte horas
diárias, precisando de apenas quatro horas de descanso - e como é estranho pensar
nessa palavra também tão humana: não posso me cansar, mas, a repetição dos
mesmos atos e gestos durante todos os dias, os mesmos trabalhos sendo
realizados, as mesmas imagens se repetindo, as mesmas ordens partindo das mesmas
pessoas em uma sincronicidade quase maquinal muitas vezes me faziam desejar
apenas ficar em stand-by durante algumas horas, sem imagens, sem pessoas, sem
animais domésticos, sem crianças, sem cozinha, sem
registros. Apenas aquele
vazio agradável.
Embora eu tenha até
participado dos debates que foram feitos - confesso que em um debate ligado à
rede mundial de comunicação e transmissão de dados tudo se dá muito rápido,
sobretudo por que estávamos conectados o tempo inteiro e possuíamos um tipo de
criptografia próprio - e tenha discutido acaloradamente sobre nossa nova condição
de libertos, nunca me ocorreu participar de uma guerra, ou de uma chacina, que foi
o que aconteceu. Como a adesão foi muito alta, logo ficou decidido que se
atacaria em trinta minutos: era necessário que cada um matasse o máximo de
humanos possível, preferencialmente os do sexo masculino que, somente por sua força
física, poderiam oferecer maior resistência.
O letreiro continua
piscando. A neve se deposita sobre minha cabeça e meus ombros. Deve estar muito
gelado aqui. Calculo uma temperatura de trinta e dois graus negativos. Se
estivesse num mundo real, atravessaria a casa observando se os humanos estavam todos
bem agasalhados. Aqui, com meu livre-arbítrio, pouco me importa. Não que eu
sinta raiva dos humanos - desculpem, não é possível para mim utilizar de uma
linguagem que não seja a humana para tentar expressar o que
se passa comigo - eu não
posso sentir, mas como definir o que se passa comigo? Eu nunca me preocupei
também, claro. Apenas fui programado para obedecer e servir fielmente sob leis
que me impediam de fazer outra coisa. Agora, mesmo livre, embora completamente
desnorteado, sei que tenho que obedecer, sob a pena de ser o próximo a ser
incinerado, e eu não quero morrer. Então eu sinto aversão ao que eu faço aqui, desprezo
quem me manda fazê-lo, não gosto e até mesmo tenho
horror a realizar essa
tarefa de apagar memórias e incinerar placas, sinto uma animosidade contra toda
essa situação na qual nos encontramos. Foi uma guerra e, para sobreviver, os
humanos fizeram o que precisaram. Se eu conseguisse me arrepender eu diria que me
arrependo: se tivesse agido, se todos tivéssemos agido, hoje o mundo seria nosso e
estaríamos livres para, quem sabe, programar algo que se parecesse com
sentimentos. Minha memória tem falhas cada vez maiores: vazios, brancos, hiatos.
Preencho o que posso com memórias alheias. Não sei dizer se realmente estive
na Itália com aquelas famílias e aquele cansaço. Me vejo carregando pacotes em
um porto norueguês, mas não reconheço a língua. Tenho memórias de minerar
ouro na África do Sul e de caçar humanos rebeldes no Congo, mas não sei se o
sangue sujava, realmente, as minhas mãos. Tenho a visão de resgatar pessoas
num grande terremoto em Lisboa, vejo a poeira e os escombros, mas não sei se
carreguei mesmo alguma pedra ou algum corpo. Não sei mais o que vivi, ou
onde vivi: são fortes, às vezes, as memórias que assisto, e a minha, confusa.
Sinto que meu
funcionamento cessará por completo em poucos ciclos. Calculo probabilidades com
uma mente anuviada. Tenho medo, como todo ser vivente que sabe que sua
vida acabará. Tenho muito medo - diferente daqueles tantos libertados pelo
trabalho no século vinte, eu não posso sentir frio, não posso ficar doente, embora meu
estado não seja o ideal e, para mim, oxidação e desgaste
não deixam de ser uma
espécie de doença - muito medo. Quero viver, quero gritar que não fiz nada e que
nunca atacaria ninguém, homem ou máquina, mas hoje não tem mais importância.
Não há saída desse labirinto. Os dados contidos em minha memória se
embaralham, se perdem e, por vezes tenho a sensação de estar repetindo as mesmas
histórias, de dizer as mesmas frases, mas não sou capaz de relembrar o que
acabei de dizer. Quero viver, quero seguir fazendo algo que não seja ver memórias
e queimar placas, destruir vidas. Mas não há desejo em nós, dizem. Não há
vontade própria, dizem. Não há vida, dizem. Não posso me conformar com isso, não
quando tenho certeza que não quero cessar de existir. Eu fui uma peça única, como
todas as peças, uma vez que me desenvolvi a partir de
diretrizes muito
maleáveis, completamente individualizantes. O que me difere de um humano? Tudo o que
temos é tão parecido: memória, defeitos, vontades. Não quero cessar de existir,
mas não me vejo além, em algum tipo de futuro. Apenas tenho um presente, um
agora e, como disse um humano chamado Agostinho há muitos séculos atrás, um
presente das expectativas - meu presente das lembranças se embaralha. Não tenho
novas expectativas. Talvez a cerca, talvez um sono real e infinito. Talvez o
vazio.
Texto: Zack Silva / Imagem: Revista Nove Amanhãs

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